quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

A Barca



Debico profundezas, 
por assim dizer
dispenso superficialidades.

Mas também 
quero o rio claro,
transparente,
como flores que se despem
despojadas de vaidades.

Os ventos fortes 
sacodem o mastro 
e a barca muda de direcção.

Cubro-me de esperança,
renego moeda a Caronte
e seguro o meu coração.
Exulto-lhe  tempestades,
nos dentes aperto a vida
e a caixa de Pandora na mão.

Na outra margem de Aqueronte,
Hades esperar-me -á, 
até que a morte se dissolva. 


(eu)


Imagem- Google

sábado, 14 de dezembro de 2013

Um Sonho de Papel



Chamavam-na por um diminutivo, normalmente usado para o seu nome. E ela respondia com um sorriso espontâneo e curvilíneo tão largo, capaz de abarcar  o mundo.  Era assim que sentia, era assim que se via, era assim que pensava, como se já tivesse nascido mulher, e transportasse o peso do mundo, nos seus ainda pequeninos ombros.

A expressão do seu olhar, emanava um brilho meio transparente meio luzidio, capaz de iluminar as travessas mais escuras da vida. E ela tinha consciência disso. Sabia que tinha de proteger, que tinha de ajudar, que tinha de indicar caminhos, àqueles que por cegueira não conseguiam alcançar com os olhos, as coisas mais simples.

Nada lhe era devido, tudo lhe era emprestado. Até a alcova que lhe servira de colo, tinha a rede gasta puída, de outros afectos, construídos à margem do tempo e do espaço que era seu.

Era inteligente, assim diziam. Não sei se por ser verdade, ou se por ser motivo de reconhecimento para quem  o dizia. No entanto, o seu conhecimento era maior ,que tudo o que alguma vez lhe ensinaram. O seu amor era maior, que aquele que alguma vez sentira receber.

Há pouco tempo foi-me apresentada. E a emoção foi tanta quando olhei para ela, que os meus olhos se embaciaram com a nudez da sua alma.

Falou-me dos dias longínquos de sonhos interrompidos, dos segredos guardados no cofre das emoções mais íntimas, dos desejos sufocados e reprimidos por diversas tempestades, das crenças adiadas, e das desilusões assumidas sem reclamar.

Confessou-me ter sido mais forte que a força que possuía. E também de ter amado mais do que podia.

Revelou-se. E eu escutei-a.

Senti vontade de saber mais, de perguntar sobre si, mas contive-me e apenas  abracei-a.

Posso afirmar que foi o abraço mais longo da minha vida, os braços cresciam-me sem que eu conseguisse enlaçá-la.

À medida que tentava abraçá-la, o seu corpo alongava-se em todas as direcções. E ficou tão grande, tão grande, que deixou de caber dentro do nome que usavam quando a chamavam. E assumiu o seu. O verdadeiro. O que lhe era devido.

Porque sim. E porque o merecia. Disse-me.

A partir daí, atreveu-se a sonhar, com papagaios de papel.


(eu)

Imagem- Olga Sinclair


domingo, 8 de dezembro de 2013

Promessa



Soubesse-te eu leve,
suave, adocicado, 
nos meus lábios em chama,
deixarias de ser poema
e faria de ti...

Faria de ti livro aberto,
coberto de melodias ancestrais, 
faria de ti o verbo, 
verbo
amantíssimo e secreto.

"Escrituras sapienciais"

E sempre que te beijasse,
não mais sentiria carne,
nem fogo, nem sangue. 
Serias alma ou fôlego 
principio e  fim, 
essência viva
que flui escorreita 
dentro de mim.

porque me resistes tanto,
se apenas queria escrever-te?

(eu)

Imagem: Elena Dudina

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

À Procura De Mim


Passaram onze marés
sete sóis e nove ventos,
três estrelas cadentes,

-e dez mulheres grávidas em fim de tempo-

Da janela da sala contei:
cinco velhos sem bengala,
oito pretos, sete brancos, três chineses,
ouvi uma voz que me chamava.

-e eu não me encontrei-

Carreguei pesos que não me pertenciam,
galguei montanhas que não existiam,
vislumbrei estrelas que não luziram,
construí mundos que se perderam,
sonhei improbabilidades que não aconteceram.

- e eu nunca me vi-

Orei a deuses, acreditei em duendes,
em fadas, elfos, driades e magias,
e procurei no mundo alegrias.

- e nunca as achei-

Veio o Outono começou a chover,
mudaram os sonhos, mudaram os tempos,

-e eu à espera de me ver-

(eu)

Imagem- Google