sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Body and Soul

                                                                         
                                                                             

Imagem: Edward Hopper

Um conto que me tocou, pela criatividade, pela sensibilidade, pela mensagem que transmite, e...e...porque o autor é o meu marido António Cebola.

 Body and Soul

“Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa somos nós”.
José Saramago

O velho Jack Daniels, tão querido e popular entre os seus amigos, estava morto. À sua frente, em cima da mesa, jazia uma chávena de cappuccino, um maço de cigarros Winston (caixa mole), uma carteira de fósforos, um cinzeiro com quatro priscas espremidas e um cigarro que ainda espirava um véu translúcido e ondulante de fumo cinza. Mais perto de si, e debaixo do peso da sua mão direita, como que a querer não deixar escapar o seu assassino, estava um livro, aberto na última página do conto “De quanta terra é que um homem precisa?”. 

 Ninguém se apercebera da sua morte. 

 (A leitura é um acto solitário e silencioso: a voz que nos mata está dentro de nós.) 

 Em fundo, ouvia-se o saxofone tenor – aveludado de azuis – de Coleman Hawkins, interpretando Body and Soul

 *** 

Jack trabalhava no bairro financeiro. Mas gostava de sair de lá, sempre que podia, indo para o outro lado da Canal, a uma cafetaria que fica no cruzamento da Varick com a Houston. Preferia o seu ambiente de colarinhos azuis ao dos brancos que dominavam o bairro onde trabalhava. Lembravam-no de seu pai. E da sua terra. Eram 6:44 quando entrou na cafetaria. Tinha estado a trabalhar, consecutivamente, cerca de vinte e quatro horas. O projecto que tinha entre mãos – compra de uma empresa subvalorizada, seguida do seu desmembramento em unidades mais pequenas, com estruturas de custos mais reduzidas e com padrões de gestão mais profissionais, e a subsequente venda e realização de ganhos vultosos – tinha que estar concluído até sexta-feira. Tinha que fazer tudo para contribuir para o sucesso da operação. Nada mais contava. Afinal, estavam em Setembro e, daí a poucos meses, começariam a ser definidos os valores dos prémios salariais desse ano. No ano anterior, em 2000, tinha sido recompensado com sete milhões de dólares; este ano, se a operação tivesse sucesso, podia contar com o dobro, seguramente. Levava consigo uma edição de “The Kreutzer Sonata and Other Stories”, de Tolstói[1], que adquirira na Strand, na Broadway com a 12. Enquanto tomava o pequeno-almoço – panquecas com xarope de ácer –, ficou a conhecer a história de Pahom. 

 *** 

Exactamente duas horas mais tarde, já recomposto, o novo Jack Daniels pediu a conta e saiu. Não se tinha apercebido da passagem do tempo: já deveria estar no seu escritório, no 94.º piso da Torre Norte do World Trade Center. Acelerando o passo, dirigiu-se para a estação de Hudson St. do metro da 7.ª Av., dizendo de si para si que, a partir de hoje, dia 11, a sua vida iria mudar radicalmente. E, porque ia com a cabeça-no-ar e com passo estugado, não deixou de notar um avião que sobrevoava Nova Iorque baixamente. 


[1] The Franklin Library, Franklin Center, Pennsylvania, 1983. Ilustrações de Don Bolognese. Uma edição limitada da colecção “The World’s Greatest Writers”.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Noites Cansadas


Instalam-se sem dó 
as noites cansadas, 
onde o leito, outrora de amor, 
hoje é dor de águas fugidias, 
geladas e separadas 
por um troço de lençol, 
que divide os corpos já sem nada 
por despir.

Os dedos, 
majestosos e macios, 
cansaram-se dos sulcos amarelecidos pelo tempo,
e os lábios esqueceram o fulgor das línguas 
que se entrelaçavam em beijos 
adocicados pelas pétalas do desejo.

É neste deserto, de lençóis imaculados, 
que se movem em choro os corpos silenciados 
por palavras gastas, 
e se lambem feridas que sangram da alma, 
sempre que a saudade se instala, 
e surgem lembranças de um amor 
que se estendia por todos os lugares.  

E o rio corria sem leito. 
Eram as paredes que amparavam os corpos 
e os astros ajudavam a inventar lugares, 
onde insano, 
era aquele que impunha fronteiras 

ao desabrochar da poesia. Ou,
ousava profanar o amor...



(eu)



Imagem-Google

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Sentada no Cais


Sim, 
permaneço sentada no cais.
Numa espera tão inútil, 
como o tempo que se gasta
a conjugar os verbos no futuro.

Vejo-me nua. 
Despida de preconceitos, 
de esperanças mal medidas, 
de alcunhas inventadas,
de vestes, 
de poderes, 
de tudo o que me deram 
sem eu tivesse pedido 
e muito menos possuído.

Olho em redor, 
no cais, 
nesta espera infindável,
e tomo consciência 
de que nunca saíra dali.
Inquieta, 
sinto o sabor dos verbos 
a conjugarem-se em catadupa 
em todos os pretéritos.

Mais uma vez, e desta, 
mais categórica que nunca,
recuso a inutilidade desta espera 
que me arrefece o corpo,
enquanto a vida se esvai pelos poros.

E subtilmente inspiro a ultima réstia de luz, 
naquele lugar onde ainda é possível
adiar a morte.

Sentada no cais.

(eu)

Imagem- Olga Domanova

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

"Quase" Digo eu...



Deixa-me que te diga:
sempre pressenti intocável 
essa tua espécie de loucura.
Por isso permitia que os lábios me sangrassem 
de tanto morder o sabor da solidão.

No peito, tinha o templo onde te venerava,
o meu corpo 
era a oração com que me ajoelhava,
perante um "quase" Deus 
que em mim habitava.

"Quase" digo eu...

Exalavas aromas a alfazema,
lavanda e alecrim,
no colo depositavas-me pérolas 
em beijos submersos de luar.
E no silêncio da tua voz eu mergulhava em mim,
deleitada... 
naqueles lençóis azuis de cetim,
sentia o fervilhar das vísceras 
e os odores da pele suada.

Hoje eu sei,
os Anjos também voam na indiferença das cores,
e nenhum Deus se permite ser amado
numa visão de tormento de um rosto 
"quase" desabitado.

"Quase" digo eu...

Bendir-te-ei sempre, meu amor, 
numa espera infindável 
entre os estilhaços da espiral da minha dor. 
Ou da minha "quase" dor.

É na transparência dos olhos que a alma se revela
e os meus, húmidos, suplicam-te que permaneças
a habitar-me os resquícios da alma,
lugar que te pertence até à decomposição
dos átomos que constituem a matéria.

Onde a "quase" loucura ainda acontece

"Quase" digo eu....

(eu)


imagem- Stephen Early

domingo, 15 de setembro de 2013

Divagações em Noites de Insónia



Renasci intacta no meio de um jardim florido, ao som do silêncio, onde os poetas dormem.
O meu corpo era pó reluzente, reflectindo o sol em raios ofuscantes de luz intensa.
Habitava corolas perfumadas, onde a vida era abundante em serenidade. E o orvalho era tudo quanto me bastava para me sentir lavada e purificada.
Nada perturbava a imensa harmonia que o meu corpo praticamente etéreo, sentia.
Era assim que eu gostava de ser. Foi assim que eu uma vez fui - alegre como quem se sente a regressar a casa. Mas já não sou.

Foi apenas um sonho. E agora a insónia impede-me de voltar a sonhar...

(eu)

                                                             

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Sei que te canso, nesta minha inquietude de devorar a vida, como se apenas me restasse um último segundo.
Mas tudo aconteceu tão depressa, que o tempo escasseia no contar dos dias e dos anos.

Os pensamentos mais profundos, surgem-me em metáforas que nem sempre consegues decifrar. E eu não sei expressar-me de outra forma. É esta a linguagem da minha alma, aquela que o meu coração aprova, em partilha com o mundo e com aqueles que amo. E com aquele que amo.Tu!

Da vida, apenas queria sentar-me a teu lado a olhar o céu. Sentir o brilho das estrelas, ver crescer o universo que juntos construímos e sentir a doçura dos dias azuis. Continuar a escrever o nosso Poema, aquele em que misturamos o sangue, a carne e os aromas da nossa pele. E que tu gostasses.

Queria tanto que os nossos olhares se misturassem no mesmo Sol! 

(eu)

Imagens- Olga Domanova


segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Cumplicidades



Era a Coly , a Cely, a Taim e a Tirol.
Éramos as melhores amigas,
e em comum tínhamos gostar do sol.

Num mundo interior , só meu,
brincávamos com a terra, as ervas secas 
e as pedrinhas polidas ao sabor da erosão.

Todos os dias percorríamos juntas,
o caminho da solidão.
Eu, numa condição física superior,
sentava-me a olhá-las do alto, 
como um Deus
a olhar pelo seu povo romeiro,
e encaminhava-as docemente
para que não se desviassem do carreiro.

Primeiro aparecia a Coly, mais corpulenta
e aparentemente mais forte. 
Admirava-a pelo seu porte, pela sua altivez.
A Cely, a mais fraquinha, rendia-se à pequenez do corpo,
mas fazendo jus à eusocialidade da sua espécie,
com vaidade fingia sempre 
empurrar as que caminhavam à sua frente.

Um dia, a vida afastou-me do meu quintal.
Deixei marcado o local dos nossos encontros,
mas sem querer perdi-me no asfalto...

No entanto, por vezes ainda viajo 
pelos labirintos da calçada
e no meio do nada, procuro em vão estas amigas
numa necessidade urgente, 
de um encontro complacente com a minha essência.

Há quem diga e afirme em abono da ciência
ser verdade,
que o peso delas na terra, supera o peso
da humanidade...

Assim são algumas memórias...que comportam
o insustentável peso da insuficiência humana. 

(eu)


Imagem: Anna Wypych

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Em Contra-Mão


Neste
caminhar lento
em contra-mão,
tenho quase sempre
a percepção
de conseguir segurar
entre os polegares, 
a enorme pequenez do mundo.
Enquanto
me permito alongar
o olhar
na verdadeira
imensidão do nada.

Depois disto,
não há turbulência ou tempestade
que me impeça o voo,
num impulso multidimensional,
capaz de calcular 
o valor exacto
da dimensão humana.

(eu)


Imagem: Stephen Early