quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

A Barca



Debico profundezas, 
por assim dizer
dispenso superficialidades.

Mas também 
quero o rio claro,
transparente,
como flores que se despem
despojadas de vaidades.

Os ventos fortes 
sacodem o mastro 
e a barca muda de direcção.

Cubro-me de esperança,
renego moeda a Caronte
e seguro o meu coração.
Exulto-lhe  tempestades,
nos dentes aperto a vida
e a caixa de Pandora na mão.

Na outra margem de Aqueronte,
Hades esperar-me -á, 
até que a morte se dissolva. 


(eu)


Imagem- Google

sábado, 14 de dezembro de 2013

Um Sonho de Papel



Chamavam-na por um diminutivo, normalmente usado para o seu nome. E ela respondia com um sorriso espontâneo e curvilíneo tão largo, capaz de abarcar  o mundo.  Era assim que sentia, era assim que se via, era assim que pensava, como se já tivesse nascido mulher, e transportasse o peso do mundo, nos seus ainda pequeninos ombros.

A expressão do seu olhar, emanava um brilho meio transparente meio luzidio, capaz de iluminar as travessas mais escuras da vida. E ela tinha consciência disso. Sabia que tinha de proteger, que tinha de ajudar, que tinha de indicar caminhos, àqueles que por cegueira não conseguiam alcançar com os olhos, as coisas mais simples.

Nada lhe era devido, tudo lhe era emprestado. Até a alcova que lhe servira de colo, tinha a rede gasta puída, de outros afectos, construídos à margem do tempo e do espaço que era seu.

Era inteligente, assim diziam. Não sei se por ser verdade, ou se por ser motivo de reconhecimento para quem  o dizia. No entanto, o seu conhecimento era maior ,que tudo o que alguma vez lhe ensinaram. O seu amor era maior, que aquele que alguma vez sentira receber.

Há pouco tempo foi-me apresentada. E a emoção foi tanta quando olhei para ela, que os meus olhos se embaciaram com a nudez da sua alma.

Falou-me dos dias longínquos de sonhos interrompidos, dos segredos guardados no cofre das emoções mais íntimas, dos desejos sufocados e reprimidos por diversas tempestades, das crenças adiadas, e das desilusões assumidas sem reclamar.

Confessou-me ter sido mais forte que a força que possuía. E também de ter amado mais do que podia.

Revelou-se. E eu escutei-a.

Senti vontade de saber mais, de perguntar sobre si, mas contive-me e apenas  abracei-a.

Posso afirmar que foi o abraço mais longo da minha vida, os braços cresciam-me sem que eu conseguisse enlaçá-la.

À medida que tentava abraçá-la, o seu corpo alongava-se em todas as direcções. E ficou tão grande, tão grande, que deixou de caber dentro do nome que usavam quando a chamavam. E assumiu o seu. O verdadeiro. O que lhe era devido.

Porque sim. E porque o merecia. Disse-me.

A partir daí, atreveu-se a sonhar, com papagaios de papel.


(eu)

Imagem- Olga Sinclair


domingo, 8 de dezembro de 2013

Promessa



Soubesse-te eu leve,
suave, adocicado, 
nos meus lábios em chama,
deixarias de ser poema
e faria de ti...

Faria de ti livro aberto,
coberto de melodias ancestrais, 
faria de ti o verbo, 
verbo
amantíssimo e secreto.

"Escrituras sapienciais"

E sempre que te beijasse,
não mais sentiria carne,
nem fogo, nem sangue. 
Serias alma ou fôlego 
principio e  fim, 
essência viva
que flui escorreita 
dentro de mim.

porque me resistes tanto,
se apenas queria escrever-te?

(eu)

Imagem: Elena Dudina

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

À Procura De Mim


Passaram onze marés
sete sóis e nove ventos,
três estrelas cadentes,

-e dez mulheres grávidas em fim de tempo-

Da janela da sala contei:
cinco velhos sem bengala,
oito pretos, sete brancos, três chineses,
ouvi uma voz que me chamava.

-e eu não me encontrei-

Carreguei pesos que não me pertenciam,
galguei montanhas que não existiam,
vislumbrei estrelas que não luziram,
construí mundos que se perderam,
sonhei improbabilidades que não aconteceram.

- e eu nunca me vi-

Orei a deuses, acreditei em duendes,
em fadas, elfos, driades e magias,
e procurei no mundo alegrias.

- e nunca as achei-

Veio o Outono começou a chover,
mudaram os sonhos, mudaram os tempos,

-e eu à espera de me ver-

(eu)

Imagem- Google

sábado, 9 de novembro de 2013

Hoje

        Fotografia de Alfred Cheney Johnston


Hoje faço anos e
ergo-me serena.

Desta vez - e só desta vez -
deixei o medo guardado no outro lado de mim. 

Há uma sede de frescura a crepitar-me nos lábios,
mas o caminho que se me afigura adiante 
é pantanoso [diria até pernicioso] 
e ladeado de charcos com sabor a sal.

Um dia disse-te: 
"Há dias, muitos dias, em que todas as palavras te pertencem".
As minhas!

Respondeste-me com um sorriso lânguido que me fez
sorrir-te também. 

E fui atrás de ti, para onde todas as  palavras me levaram.
As tuas!

Mesmo aquelas que não disseste. Ou não conseguiste dizer. 
Acho que preferiste resguardá-las para uma cerimónia de iniciação, 
um pouco antes de adormecermos. Os dois.

Achei bem, e abracei-me a ti. 

Li-te nos olhos o amor.
Falaram-me dos dias felizes, em que todos os jardins floriam
ao nascer do sol.

Mas, um dia, todos os poetas estarão mortos. 
E as flores serão decepadas e depositadas em jarras de vidro. 
Assim acabarão os jardins.
E a vida deixará de ser colorida e de ter perfume. 
[A terra ficará árida.] Sobrarão apenas as sombras,
as memórias e, quem sabe, o eco das palavras.

Das minhas. Das tuas.

Antevejo  o caminho que nos resta percorrer
a escorregar pelos portões da vida.
Todas as palavras que nos restam se tornarão mudas 
no escuro da noite.
Onde adormeceremos juntos.

De olhos cerrados, de mãos entrelaçadas,
tal qual aquelas que entrelaçaram as nossas vidas.

A minha. A tua. A nossa.

(eu)

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Passos Incertos

                                           Imagem- Escher




Ainda não sei porque me desencontrei
dos passos dos homens,
como se um fio luminoso marcasse a rota, e insistisse
em segurar-me os pés,
sobre a lâmina acutilante de uma navalha aguçada.

Amedrontada,
num equilíbrio quase forçado, ergo-me (trans)lúcida
numa tentativa infrutífera de encarar quem ousou
decepar-me os sonhos.

Silenciada,
na transparência de um Outono antecipado,
tento ensaiar o caminho, numa sequência de passos
sem retorno.

Mas ainda caminho!
.
.
.
ainda consigo caminhar...
.
.
.
Faço-me acompanhar de palavras
desiludidas pelas melodias que deixaram de entoar.
E os sorrisos que outrora me embalavam, tornaram-se hoje,
canções de despedida.
.
.
.

As marés, as noites de luar, o chilrear dos pássaros,
caíram no esquecimento das coisas sem nome.

Mas eu continuo a caminhar...
.
.
.

Num corpo cada vez mais frágil,
à medida que o coração se agiganta.
E cresce...
                       CRESCE
                                               CRESCE.


A cada passo que dou,
a venda outrora opaca que me cobria o olhar cansado,
desdobra-se no horizonte,
deixando transparecer a luz da minha existência.

Pressinto o respirar das árvores,
pressinto o canto das estrelas,
pressinto o pulsar do sangue da vida,
e, por momentos, parece-me lógica a imortalidade de todas as coisas.

Quem sabe, numa outra dimensão, estará a ser pronunciado o meu nome.
Quem sabe, estes passos me conduzirão a algum lugar.


quem sabe...
talvez
.
.

eu caminhe com destino...

Pois sem parar, de pés descalços, continuo sempre,

                                                                                       

                                                                                        a caminhar...

(eu)

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Imagem do filme Pillow Book, de Peter Greenaway

E porque acho que o que é belo deve ser partilhado, com a devida autorização do autor, deixo aqui mais um texto de António Cebola. Com quem tenho o privilégio de estar casada, há quase trinta e dois anos...


Ouroboros

“Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.”
Fernando Pessoa

(Para que conste: és um produto do Quarteirão do Escritor, e eu sou o teu Criador.)

Queria-te belo e formoso. A minha Dafne transfolheada de loiro.

Imaginava-te dúctil, subserviente. Moldável e fluido. Vertido duma torrente irreprimível, caudalosa.

Sonhava-te exótico, desenhado com linhas árabes, siamesas, kanji, ou sânscritas. Reinventava-te permanentemente, adornando-te com oximoros, prosopopeias e quejandos.

Desejava-te sage e letrado. Reflexo de todas as ciências e de todas as artes que te precederam, e das que habit (-áram; -am; -arão) outros espaço e tempos. Resplandecência virtuosa.

Mas não aceitaste a tua condição de criatura. Aspiravas a voos mais altos: querias ser, também, criador. Rebelaste-te contra a força do punho que te queria plasmado na folha imaculada. Desprezaste as oferendas – meras especiarias – que poderiam temperar o teu corpo e embriagar o espírito dos homens. Estancaste a corrente criadora e inverteste-lhe a direcção. Ousaste interrogar-me.

Podias ter sido um conto: não vales um tostão: exibes-te pedante e cabotino, iletrado e ignaro.

A substância da obra ficou aquém do sonho da ideia. Renegaste a imortalidade. Repudio-te. Morreste-me.

Exauridos, chegámos ao

FIM

(a folha seguinte está, outra vez – teimosamente –, em branco)

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Body and Soul

                                                                         
                                                                             

Imagem: Edward Hopper

Um conto que me tocou, pela criatividade, pela sensibilidade, pela mensagem que transmite, e...e...porque o autor é o meu marido António Cebola.

 Body and Soul

“Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa somos nós”.
José Saramago

O velho Jack Daniels, tão querido e popular entre os seus amigos, estava morto. À sua frente, em cima da mesa, jazia uma chávena de cappuccino, um maço de cigarros Winston (caixa mole), uma carteira de fósforos, um cinzeiro com quatro priscas espremidas e um cigarro que ainda espirava um véu translúcido e ondulante de fumo cinza. Mais perto de si, e debaixo do peso da sua mão direita, como que a querer não deixar escapar o seu assassino, estava um livro, aberto na última página do conto “De quanta terra é que um homem precisa?”. 

 Ninguém se apercebera da sua morte. 

 (A leitura é um acto solitário e silencioso: a voz que nos mata está dentro de nós.) 

 Em fundo, ouvia-se o saxofone tenor – aveludado de azuis – de Coleman Hawkins, interpretando Body and Soul

 *** 

Jack trabalhava no bairro financeiro. Mas gostava de sair de lá, sempre que podia, indo para o outro lado da Canal, a uma cafetaria que fica no cruzamento da Varick com a Houston. Preferia o seu ambiente de colarinhos azuis ao dos brancos que dominavam o bairro onde trabalhava. Lembravam-no de seu pai. E da sua terra. Eram 6:44 quando entrou na cafetaria. Tinha estado a trabalhar, consecutivamente, cerca de vinte e quatro horas. O projecto que tinha entre mãos – compra de uma empresa subvalorizada, seguida do seu desmembramento em unidades mais pequenas, com estruturas de custos mais reduzidas e com padrões de gestão mais profissionais, e a subsequente venda e realização de ganhos vultosos – tinha que estar concluído até sexta-feira. Tinha que fazer tudo para contribuir para o sucesso da operação. Nada mais contava. Afinal, estavam em Setembro e, daí a poucos meses, começariam a ser definidos os valores dos prémios salariais desse ano. No ano anterior, em 2000, tinha sido recompensado com sete milhões de dólares; este ano, se a operação tivesse sucesso, podia contar com o dobro, seguramente. Levava consigo uma edição de “The Kreutzer Sonata and Other Stories”, de Tolstói[1], que adquirira na Strand, na Broadway com a 12. Enquanto tomava o pequeno-almoço – panquecas com xarope de ácer –, ficou a conhecer a história de Pahom. 

 *** 

Exactamente duas horas mais tarde, já recomposto, o novo Jack Daniels pediu a conta e saiu. Não se tinha apercebido da passagem do tempo: já deveria estar no seu escritório, no 94.º piso da Torre Norte do World Trade Center. Acelerando o passo, dirigiu-se para a estação de Hudson St. do metro da 7.ª Av., dizendo de si para si que, a partir de hoje, dia 11, a sua vida iria mudar radicalmente. E, porque ia com a cabeça-no-ar e com passo estugado, não deixou de notar um avião que sobrevoava Nova Iorque baixamente. 


[1] The Franklin Library, Franklin Center, Pennsylvania, 1983. Ilustrações de Don Bolognese. Uma edição limitada da colecção “The World’s Greatest Writers”.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Noites Cansadas


Instalam-se sem dó 
as noites cansadas, 
onde o leito, outrora de amor, 
hoje é dor de águas fugidias, 
geladas e separadas 
por um troço de lençol, 
que divide os corpos já sem nada 
por despir.

Os dedos, 
majestosos e macios, 
cansaram-se dos sulcos amarelecidos pelo tempo,
e os lábios esqueceram o fulgor das línguas 
que se entrelaçavam em beijos 
adocicados pelas pétalas do desejo.

É neste deserto, de lençóis imaculados, 
que se movem em choro os corpos silenciados 
por palavras gastas, 
e se lambem feridas que sangram da alma, 
sempre que a saudade se instala, 
e surgem lembranças de um amor 
que se estendia por todos os lugares.  

E o rio corria sem leito. 
Eram as paredes que amparavam os corpos 
e os astros ajudavam a inventar lugares, 
onde insano, 
era aquele que impunha fronteiras 

ao desabrochar da poesia. Ou,
ousava profanar o amor...



(eu)



Imagem-Google

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Sentada no Cais


Sim, 
permaneço sentada no cais.
Numa espera tão inútil, 
como o tempo que se gasta
a conjugar os verbos no futuro.

Vejo-me nua. 
Despida de preconceitos, 
de esperanças mal medidas, 
de alcunhas inventadas,
de vestes, 
de poderes, 
de tudo o que me deram 
sem eu tivesse pedido 
e muito menos possuído.

Olho em redor, 
no cais, 
nesta espera infindável,
e tomo consciência 
de que nunca saíra dali.
Inquieta, 
sinto o sabor dos verbos 
a conjugarem-se em catadupa 
em todos os pretéritos.

Mais uma vez, e desta, 
mais categórica que nunca,
recuso a inutilidade desta espera 
que me arrefece o corpo,
enquanto a vida se esvai pelos poros.

E subtilmente inspiro a ultima réstia de luz, 
naquele lugar onde ainda é possível
adiar a morte.

Sentada no cais.

(eu)

Imagem- Olga Domanova

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

"Quase" Digo eu...



Deixa-me que te diga:
sempre pressenti intocável 
essa tua espécie de loucura.
Por isso permitia que os lábios me sangrassem 
de tanto morder o sabor da solidão.

No peito, tinha o templo onde te venerava,
o meu corpo 
era a oração com que me ajoelhava,
perante um "quase" Deus 
que em mim habitava.

"Quase" digo eu...

Exalavas aromas a alfazema,
lavanda e alecrim,
no colo depositavas-me pérolas 
em beijos submersos de luar.
E no silêncio da tua voz eu mergulhava em mim,
deleitada... 
naqueles lençóis azuis de cetim,
sentia o fervilhar das vísceras 
e os odores da pele suada.

Hoje eu sei,
os Anjos também voam na indiferença das cores,
e nenhum Deus se permite ser amado
numa visão de tormento de um rosto 
"quase" desabitado.

"Quase" digo eu...

Bendir-te-ei sempre, meu amor, 
numa espera infindável 
entre os estilhaços da espiral da minha dor. 
Ou da minha "quase" dor.

É na transparência dos olhos que a alma se revela
e os meus, húmidos, suplicam-te que permaneças
a habitar-me os resquícios da alma,
lugar que te pertence até à decomposição
dos átomos que constituem a matéria.

Onde a "quase" loucura ainda acontece

"Quase" digo eu....

(eu)


imagem- Stephen Early

domingo, 15 de setembro de 2013

Divagações em Noites de Insónia



Renasci intacta no meio de um jardim florido, ao som do silêncio, onde os poetas dormem.
O meu corpo era pó reluzente, reflectindo o sol em raios ofuscantes de luz intensa.
Habitava corolas perfumadas, onde a vida era abundante em serenidade. E o orvalho era tudo quanto me bastava para me sentir lavada e purificada.
Nada perturbava a imensa harmonia que o meu corpo praticamente etéreo, sentia.
Era assim que eu gostava de ser. Foi assim que eu uma vez fui - alegre como quem se sente a regressar a casa. Mas já não sou.

Foi apenas um sonho. E agora a insónia impede-me de voltar a sonhar...

(eu)

                                                             

**********************




Sei que te canso, nesta minha inquietude de devorar a vida, como se apenas me restasse um último segundo.
Mas tudo aconteceu tão depressa, que o tempo escasseia no contar dos dias e dos anos.

Os pensamentos mais profundos, surgem-me em metáforas que nem sempre consegues decifrar. E eu não sei expressar-me de outra forma. É esta a linguagem da minha alma, aquela que o meu coração aprova, em partilha com o mundo e com aqueles que amo. E com aquele que amo.Tu!

Da vida, apenas queria sentar-me a teu lado a olhar o céu. Sentir o brilho das estrelas, ver crescer o universo que juntos construímos e sentir a doçura dos dias azuis. Continuar a escrever o nosso Poema, aquele em que misturamos o sangue, a carne e os aromas da nossa pele. E que tu gostasses.

Queria tanto que os nossos olhares se misturassem no mesmo Sol! 

(eu)

Imagens- Olga Domanova


segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Cumplicidades



Era a Coly , a Cely, a Taim e a Tirol.
Éramos as melhores amigas,
e em comum tínhamos gostar do sol.

Num mundo interior , só meu,
brincávamos com a terra, as ervas secas 
e as pedrinhas polidas ao sabor da erosão.

Todos os dias percorríamos juntas,
o caminho da solidão.
Eu, numa condição física superior,
sentava-me a olhá-las do alto, 
como um Deus
a olhar pelo seu povo romeiro,
e encaminhava-as docemente
para que não se desviassem do carreiro.

Primeiro aparecia a Coly, mais corpulenta
e aparentemente mais forte. 
Admirava-a pelo seu porte, pela sua altivez.
A Cely, a mais fraquinha, rendia-se à pequenez do corpo,
mas fazendo jus à eusocialidade da sua espécie,
com vaidade fingia sempre 
empurrar as que caminhavam à sua frente.

Um dia, a vida afastou-me do meu quintal.
Deixei marcado o local dos nossos encontros,
mas sem querer perdi-me no asfalto...

No entanto, por vezes ainda viajo 
pelos labirintos da calçada
e no meio do nada, procuro em vão estas amigas
numa necessidade urgente, 
de um encontro complacente com a minha essência.

Há quem diga e afirme em abono da ciência
ser verdade,
que o peso delas na terra, supera o peso
da humanidade...

Assim são algumas memórias...que comportam
o insustentável peso da insuficiência humana. 

(eu)


Imagem: Anna Wypych

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Em Contra-Mão


Neste
caminhar lento
em contra-mão,
tenho quase sempre
a percepção
de conseguir segurar
entre os polegares, 
a enorme pequenez do mundo.
Enquanto
me permito alongar
o olhar
na verdadeira
imensidão do nada.

Depois disto,
não há turbulência ou tempestade
que me impeça o voo,
num impulso multidimensional,
capaz de calcular 
o valor exacto
da dimensão humana.

(eu)


Imagem: Stephen Early

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

EU SOU


Sou feliz! 
Mas não sei se posso dizê-lo assim tão abertamente.
Assumir alegria ou felicidade,
é quase uma blasfémia nos tempos que correm
ou uma manifestação de analfabetismo psicológico.
Dizem eles, os mestres da sabedoria de gente letrada. 

Há também quem não goste de ouvir.
A maior parte das vezes, os homens honrados
devem ser apelidados de coitadinhos, 
pobrezinhos e todas as coisas terminadas em" inhos".
Acham eles, os sábios, os deuses, os magos da sabedoria.

Não é bonito viver-se contente e olhar-se para a vida 
com olhos de quem a vê e sente.
Mas eu sou feliz e o meu coração está cheio de gratidão. 

Hoje, arriscaria até dizer que sou herdeira 
de um património interminável e vitalício.
Tudo o que os meus olhos alcançam me pertence.
No dia em que nasci,
recebi esta herança e disseram-me ser para sempre.
Vivo em harmonia com o mundo: não como animais, 
e até me tornei objectora de consciência.

Contra quê?
Contra tudo o que não é natural, contra tudo o que 
me priva da liberdade de ser feliz. Por isso sou feliz.
Da vida sei, que pouco sei. Apenas o que consegui aprender
e o que a minha sensibilidade me vai permitindo captar.

Roubar, penso que até já roubei, mas por ignorância, juro!
Talvez uma ou outra flor que de algum jardim decepei,
mas hoje planto canteiros e abraço árvores. E também sei
que:
"amor vincit omnia"

Línguas, falo todas as que falam do amor
e olho para ti, sim...tu aí, que neste momento me achas louca,
e vejo-me nos teus olhos, no teu coração e também na tua boca.

Nunca digam que matei um leão, nem tampouco uma galinha
ou uma formiga moribunda a suplicar eutanásia.
Nunca falei mal: nem dos políticos, nem das pastas dos ministros,
nem do futebol, nem do big brother, nem sequer da música pimba.

No entanto, defeitos tenho muitos:
gosto de gatos, ratos, tubarões, formigas e coelhos anões.
E de chocolates Milka.

Sou feliz e objectora de consciência!
Que querem que eu faça?... Bolas!


(eu)


Imagem: Alexander Dolgikh

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Rendição



Hoje, os dias parecem-me mais longos
sempre que estendo os braços
numa tentativa de alcançar o sol
em inexorável abraço - que a vida me permite -,
sem que necessário seja pedir-lhe licença.

Hoje talvez, até, eu possa dizer-te
que não existem medos a atormentarem-me
e que todas as palavras que escrevo 
me sabem a bagas doces e maduras
colhidas numa manhã de verão.

Quem sabe,
talvez eu sinta poder habitar o inabitável
e soletrar o indizível. (Talvez.)

Sobre ti, os meus olhos caminham - paisagem minha -
onde o meu olhar se alonga.
Pele onde estendo beijos doces, quando a língua me sabe a mel
e abafo suspiros. (Sempre que suspiro.)

Digo-te ainda:

Queria contar-te mais sobre a demanda dos dias,
azuis. E as pétalas caíam-nos dos braços, 
e tu sorrias, para que eu entendesse 
que o infinito se alonga nos céus 
e que o chão nada mais é 
que o espaço onde caminhamos. (Juntos.)

Sempre (juntos).


(eu)


Foto- Alfred Cheney Johnston

terça-feira, 2 de julho de 2013

Será que Tenho Tempo?


Ainda tenho tempo!
Ainda tenho tempo para o último cigarro,
para a última gota deixada no copo de balão,
quem sabe até para o último passo de dança.
Ou então,
até poderei esperar
dentro do meu vestido vermelho 
a chegada do próximo verão.

Ah!...tanto tempo que eu tenho!
- só não o queria gastar em vão.

Afinal até nem fumo!
E parece-me que esqueci completamente
para onde queria ir.
Foi como se de repente me tivesse transformado 
numa ave que voa sem rumo,
à procura de um poiso para descansar ou dormir.

Pensando bem...
acho que vou ficar por aqui,
refastelada no sofá a contemplar
uma tela de Rembrandt que teima 
em não sair da minha frente.
E insiste incomodar-me com o olhar.

Que quererá ele de mim?
Acho que não sou o seu género,
nem tampouco sei porque razão veio parar aqui.
Entrou-me no poema inesperadamente,
só que neste momento eu preferia Dalí.
Esse sim, como que ressurgido do renascimento
devolve-me a visão humanista e naturalista 
que habita dentro de si,
no surreal dos seus sonhos...pintados.

Dou mais uma volta e,
aninho-me no meu assento.
Acendo um pau de incenso e ao som de Satie
fico à espera do tempo, um tempo só para mim.
Mas atenção! 
Ainda que dissimulada, não é minha intenção 
petrificar-me em estátua: 
mesmo que que fosse no Louvre,
-Vénus de Milo nem pensar, 
quero ter dedos para escrever e braços que saibam abraçar
-Vitória alada de Samotracia, também não,
embora com asas, falta-lhe a cabeça para sonhar 
e um olhar que sorri.
A não ser, que fosse...Psique reanimada por el beso del amor...!

Et voilà!

Afinal, parece que este olhar sonhador lançado sobre ti, 
descobriu que da última festa, sobre a mesa da sala
ainda resta um último mon cheri ...
ao lado de duas flutes vazias.

Espero-te então, dentro do meu vestido vermelho.
Será que vens a tempo? 
Ou terei de esperar até ao próximo verão?

(eu)

Imagem- Google

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Hoje Falo de Amor



Hão-de nascer estrelas e mais estrelas em tuas mãos,
e com elas farás um colar de brilhantes.
Colocá-lo-ás no meu pescoço e a seguir vais segredar-me:
- Um dia morrerás com ele, e nesse dia, à noite, todo o firmamento se iluminará;
todas os astros tomarão o seu lugar, e tu serás vento, pó e ar.
Assim será, assim vai ser...

Compreendi o enlace ofuscante do amor - disse-te! -,
Cuja luz foste capaz de colocar sobre a minha pele, iluminando-a,
- voltei a dizer-te.
E nesse momento transformaste-me em céu, ainda que não fosse o tempo;
Só então percebi o pacto que acabaras de fazer comigo!

Cada brilhante reflectia em mim o espectro da luz,
como se um arco-íris me abraçasse em aliança mensageira
simbolizando algo que se tornava eterno: sete cores, sete notas musicais,
um arauto divino, transportando nas mãos sete sóis.
Um dia morreremos e ficaremos eternos, disse-te eu!
Eu e tu...tu e eu?, perguntaste-me.
Sim! Seremos sempre dois! Sempre dois,
enquanto um de nós viver, respondi-te.
Unidos por um colar de estrelas, aquelas que tiveram de morrer
E se transformaram em pó
para que tu e eu, eu e tu, tivéssemos oportunidade de existir.

É assim que vejo o mistério...
(eu)  


Imagens- Anna Berezovskaya
                                



(eu)


                                                                       

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Talvez



Hoje as palavras saem-me gélidas
e os versos surgem descompassados 
e fora de tempo.
Nem mesmo assim consigo travar
este impulso que me sacode a alma.

Há uma inquietação dentro de mim
como se o poema quisesse saltar 
sobre vernáculos sentires.
no dilema de um silêncio em maré de luto.

Não vislumbro um único luzeiro
nesta palinódia em que me encontro.

Pesa-me o cansaço dos silêncios
em que caminho sem ruído
para não acordar metáforas
escondidas na minha própria sombra.

As pálpebras vergam-se à luz
e as estrelas da noite envergonham-se
da inactividade do meu pensamento.

Tudo se desalinha nesta pérfida dormência
em que me petrifico.

Pouso a pena sucumbindo à dor
e o poema perde a força para sangrar.

Eu juro que tentei sorrir
mas hoje, os meus versos
pediram refugio a uma sombra nocturna.

Talvez amanhã eu fale d'Amor!
Talvez...
(eu)

Imagem-Alexander Dolgikh

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Carta a Tery









[Às vezes não te reconheço, Tery!]

Mudas a voz ao mundo 
e vens dizer-me
que os meus poemas são mudos!
Eu não escrevo para falar de coisas que não gosto,
nem sequer para repetir vezes sem fim 
mentiras escabrosas
- para isso existem os meios de comunicação
social...!

Há muitos sábios que por aí andam
a fazerem-te cair no engodo de histórias
mirabolantes, 
anestesiam-te cada vez mais
o cérebro 
e tu gostas! 

[O pior é que tu gostas, Tery!]

Ah...já sei! 
Talvez eu devesse falar de política,
futebol, da novela da noite, ou quem sabe, 
...do Big brother! 
Ou então escrever uma epopeia,
qual Ilíada ou Odisseia!,
ou de Virgílio a Eneida.

[Já não há heróis, Tery...!]

Assim... o último que me lembro...
foi Vasco da Gama!
[Ah...mas esse pertence a Camões!]
Que mesmo lá no fundo do túmulo
será sempre elevado acima
das possibilidades humanas
pela coragem e sabedoria...
[Não esquecer também a valentia!]

-"Mais do que permitia a força humana,"-
assim se lia e relia... 

[Outros tempos, Tery...!]

Eu escrevo apenas desabafos
quando os meus dedos se enchem desta 
tremedeira incontrolável
nem sempre quente ,nem sempre morna
mas que me faz arder a pele e a torna 
extrapolável

É este o caminho que a minha escrita segue:
Arregaço as mangas num impulso
e pouso as mãos sobre a folha de papel
- não vá isto ser doença que se pegue!

[E tu, Tery! ...!]

Olhas-me com esses olhos devastadores
inquiridores, acusadores, como se fosse culpa minha
as cheias que nos surpreendem no verão
ou como se eu pudesse escolher
entre um tsunami ou a lava de um vulcão...

[Mesmo assim, acho que prefiro a lava:
o fogo tem mais a ver comigo,
e não é pelo signo,
não!
O meu signo é Escorpião! Água!
Que se adentra por mim em rio
como um fio de luz 
ou uma chama flutuante
numa veia mais ou menos obcecada
que me impede ficar calada.]

[Agora Tery...!] 

O que era mesmo importante saber
para que o meu poema pudesse ter estatuto,
era que temática escolher
para que não saísse mudo...

[Tchau, Tery!]

E não é que tchau 
está no dicionário da língua portuguesa! 


(eu)

Imagens - Anna Berezovskaya e Joanna Chrobak






sábado, 8 de junho de 2013

Feliz Aniversário!

8 de Junho de 2013 





Faz hoje 28 anos, também era sábado.
O dia amanhecia claro, soalheiro, talvez o dia mais quente dessa Primavera. Pelas 9:35 fui mãe pela segunda vez. Era um rapaz e chama-se António.
Um enorme beijinho de parabéns meu filho.
E muitas felicidades.

Concerto para piano e orquestra n.º 3 de Sergei Rachmaninov, interpretado por António Cebola
Acompanhado ao piano por Gonçalo Simões
1.ª parte2.ª parte; e 3.ª parte

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Ao Som de Uma Flauta



Todos os passos
com que caminhei pela vida
me comovem.
E tornam urgente
o momento de legitimá-los
através da palavra.


                      E como musica de fundo
                             ouço o som de uma flauta!

           Por
               isso
                     testemunho:


Sempre que me deténs o rosto
entre as tuas mãos trémulas,
canso-me de tanta lucidez,
e emerge em mim
a vontade de mergulhar
em vagas grisalhas
de um mar de rosas brancas.

                                 E como musica de fundo
                                        ouço o som de uma flauta!


Como se me segredasse ao ouvido
que essas águas em que tento me afogar,
são as vestes da inocência despudorada
do meu corpo nu, lançado ao abandono


numa
     noite
           que se re.veste

                        de luar

                               
                                  E como musica de fundo
                                         ouço o som de uma flauta!


Tornando irreprimível esta força do amor
que me rasgou o ventre
e as minhas mãos se ergueram na busca
incessante da luz que nos glorificou a vida.

Por
   isso
        a partir
                 d'agora

                         o Poema
                                   também

                                           é vosso:

                           
                                              Tendo como musica de fundo
                                                      sempre o som de uma flauta!


Sim, sois vós meus frutos amados
a fonte que me sacia a sede.
Sois vós o enigma do mistério sublime
de dois corpos unidos
que fazem gemer estes versos lúcidos
do sentimento que me preenche.

Sois vós, o cumprimento de uma vida sem guião,
o movimento mais sublime de uma eterna paixão,
o vulto incandescente de duas mãos
que me moldam o rosto
e me incendeiam o sangue...


a pele
       arde-me:
                 ado
                    ci
                      cada
                          mente....


                                           Tendo como musica de fundo
                                                  sempre o som de uma flauta!

Sim , sois vós meus filhos amados
o testemunho exacto
desse lugar onde pretendo envelhecer
até que meu corpo já flácido se molde:

          à
             exactidão
                       deste

   ]In
       fi
          ni
             to[

     



         A
          M
           O
            R

                                           Tendo como musica de fundo
                                                     sempre o som de uma flauta!

(eu)


Imagem: Joanna Chrobak e Hendrick  ter Brugghen

terça-feira, 21 de maio de 2013

A Partir do Ponto de Partida




E voltara outra vez, ao início de tudo. Àquele ponto equidistante das margens, onde se sentiu pousar, no momento em que foi expulsa de um túnel escuro, por se ter esgotado o seu tempo de permanência.
Caiu numa estrada esquecida, pautada por duas linhas longitudinais, à semelhança das que contêm as águas de um rio.
Seguiu sempre em linha recta, deixando imaculado todo o espaço que ladeava as suas pegadas.
Sentia dentro de si, uma força viva que a impelia a continuar o percurso, vislumbrando em seus sonhos: cores, aromas e flores, capazes de alargarem sorrisos, e fazerem os homens felizes.
Algumas vezes, neste seu caminhar sem pressas, se apercebeu de ruídos de fundo vindos sem saber de onde, que tentavam assombrar-lhe o caminho e muitas vezes lhe criaram a ilusão, de que seria melhor repousar os pés e esperar que a vida se encarregasse de decidir, se deveria ou não, mostrar-lhe aqueles lugares para onde nunca ousara olhar.
A imensidão das águas que a tumultuavam, impossibilitaram-na de se aquietar.
E, sentindo-se novamente na dependência do tempo que ameaçava esgotar-se , resolveu recomeçar, renascer, e deixar os pássaros voarem livremente entre as margens que ela própria lhes impusera, no momento em que se sentiu pousar no ponto de partida.
Sem destino marcado, mas com um objectivo bem delineado, começou a pintar com palavras, a sua própria paisagem...


(eu)



Imagem: Felix Mas

terça-feira, 7 de maio de 2013

Adornos




Sempre, ao amanhecer,
há orquídeas brancas a revestirem-me a pele
e pérolas que me adornam
como se eu as merecesse.

Sobre o leito, 
deixo o silêncio das horas cansadas,
onde permanecem gotas de suor falecido,
abandonadas ao destino das palavras.

Há muito, que não ousava usar o verbo,
pergunto até, se valerá a pena
estender a dor, num rol indiscreto de emoções.

Desnudar-me da alvura das flores,
e atirar-me ao mundo na ânsia
com que as aves sobrevoam os céus 
em gritos silentes de paixão.

Desconheço as horas que se revestem 
em véspera do dia seguinte.
Desconheço a metafísica que me envolve o Ser.
Desconheço a brevidade com que me dirijo 
para o oculto da passagem secreta.

Desconheço também o segredo das ostras
e de todas as criaturas submersas em alto mar.

No entanto as pérolas insistem em enfeitar-me o colo,
as pétalas brancas em cobrirem-me o corpo nu.

Enquanto a respiração me segura à vida
e me dá o privilégio de reter, e, não escrever:

- o último verso-

(eu)

Imagem -Alfred Cheney johnston -

sábado, 27 de abril de 2013

Sei




Sei 
desse tempo 
vertiginosamente doce
de um sol breve
em que todas as línguas
tinham sabor 
a beijos.

Sei 
da forma
como transgredíamos 
as horas
e iludíamos os corpos,
permitindo ao esquecimento
coisas 
insignificantes.

Só que agora
as palavras desaguam 
em rios de silêncios, 
adormecidos.

E o leito que nos embala
a vida,
guarda também
o segredo 
da nossa morte.

Num mar de esperança 
sem tempo marcado.

Sei...
porque sei!

(eu)

sexta-feira, 19 de abril de 2013

O Esculpir da Palavra

                                                                                                                           
                                                                                                               

Na aflição do teu olhar
pressinto o tumulto das palavras
impossíveis
aquelas a quem roubaram o sangue
o ventre os seios
e por isso se tornaram inférteis.

Pressinto o descodificar da duvida
e a insuficiência 
com que são atiradas p'ra vida
no momento em que caem no chão
escorregadas das mãos de um poeta 
qualquer.

É nesse silêncio nefasto
onde não consegues habitar
que a tua boca saliva com prazer 
vocábulos adulterados
e vomitados pela ausência da estrutura 
indestrutível da tua voz

Diria eu, que é nesse momento
que o poema te atravessa o peito
e repudias a insignificância 
das palavras acorrentadas.

As aves nocturnas vestem-se de luz
inundando-te o olhar...

(eu)
Imagem- Daria endresen

terça-feira, 16 de abril de 2013

Abandono



Sento-me à sombra do poema
naquele lugar
onde dei vida ao meu primeiro verso.

Estendo os braços ao sonho
cansada da lucidez com que repudiei
fantasmas 
e aboli todas as almas negligentes
que tentaram cortar-me as veias.

O sangue fustigado continua 
a forçar a vida dos meus lábios 
sem conseguirem dar cumprimento 
às palavras
desalinhadas na insipidez da voz.

Despida da pele que me envolve
ouço o estrondo da alma que se comove 
atirada à inocência do sonho 
que lambe o silêncio
no interior das bocas 
consentidas,
caladas , frias, 
despudoradamente
mudas.

(eu)

domingo, 14 de abril de 2013

Mais um Dia




Mais um dia, em que tomou consciência da inutilidade da sua existência.
Sabia-se diferente desde sempre. 
O olhar claro e ampliado com que via o mundo, começou a 
perturbá-la, pela forma simplista com que se vira obrigada a olhar para o reflexo da sua imagem.
Todos os dias lhe era pedida uma "calma" que não possuía. 
Os seus braços cansados, já sem força para abraçar as flores que lhe foram colhidas da alma, penderam ao longo do corpo. Inertes, como hastes secas... sem vida!
Sentou-se. Vencida pela inércia de um pensamento sem voz, queria apenas que a sua sombra se esfumasse.
Do olho direito sentiu escorrer uma lágrima. Nela habitava a história que não era capaz de continuar.
E assim se ia deixando diluir, em cada gota de sal que lhe chegava aos lábios, ao mesmo tempo que escrevia palavras, em tom de despedida...

(eu)