terça-feira, 15 de outubro de 2013

Imagem do filme Pillow Book, de Peter Greenaway

E porque acho que o que é belo deve ser partilhado, com a devida autorização do autor, deixo aqui mais um texto de António Cebola. Com quem tenho o privilégio de estar casada, há quase trinta e dois anos...


Ouroboros

“Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.”
Fernando Pessoa

(Para que conste: és um produto do Quarteirão do Escritor, e eu sou o teu Criador.)

Queria-te belo e formoso. A minha Dafne transfolheada de loiro.

Imaginava-te dúctil, subserviente. Moldável e fluido. Vertido duma torrente irreprimível, caudalosa.

Sonhava-te exótico, desenhado com linhas árabes, siamesas, kanji, ou sânscritas. Reinventava-te permanentemente, adornando-te com oximoros, prosopopeias e quejandos.

Desejava-te sage e letrado. Reflexo de todas as ciências e de todas as artes que te precederam, e das que habit (-áram; -am; -arão) outros espaço e tempos. Resplandecência virtuosa.

Mas não aceitaste a tua condição de criatura. Aspiravas a voos mais altos: querias ser, também, criador. Rebelaste-te contra a força do punho que te queria plasmado na folha imaculada. Desprezaste as oferendas – meras especiarias – que poderiam temperar o teu corpo e embriagar o espírito dos homens. Estancaste a corrente criadora e inverteste-lhe a direcção. Ousaste interrogar-me.

Podias ter sido um conto: não vales um tostão: exibes-te pedante e cabotino, iletrado e ignaro.

A substância da obra ficou aquém do sonho da ideia. Renegaste a imortalidade. Repudio-te. Morreste-me.

Exauridos, chegámos ao

FIM

(a folha seguinte está, outra vez – teimosamente –, em branco)

12 comentários:

  1. Minha querida

    O que é bom tem de ser mesmo partilhado, e este texto é sublime.

    Um beijinho com carinho
    Sonhadora

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  2. um texto com muita qualidade literária.
    e a folha seguinte estará sempre em branco, à espera de ser teimosamente escrita.
    gostei muito do texto do António Cebola.

    beijinho

    :)

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  3. reitero, estimada Cristina, o que já aqui disse, na oportunidade: o seu esposo (tal como a Cristina). prima por uma escrita inteligente, culta e, simultâneamente, laivada de um lirismo metafórico que me acrescenta.
    vir aqui lê-los, a ambos, e por conseguinte, tornou-se caminho obrigatório nos meus tempos desobrigados de trabalho.

    a ambos o meu enorme Obrigada.
    fraterno abraço
    Mel

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  4. Nunca há um fim, a vida é feita de reinícios.
    (Há sempre uma folha em branco que espera por nós)
    Cativaram-me imenso os meandros da escrita do António. Parabéns!

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  5. Magnífico, na forma e no conteúdo.
    Tem um bom fim de semana, querida amiga Cristina.
    Beijo.

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  6. Uma criação original e bela!
    Gostei desta partilha, amiga Cristina.
    Beijinho.

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  7. Um texto magnifico. Um conteúdo pleno de interesse.

    Belíssima esta partilha. Óptima escolha. Parabéns

    Bom domingo

    Bjgrande do Lago

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  8. Olá, querida Cristina!

    Como está/ão?

    Li, o texto do António, seu marido, já há dias, mas sem tempo para o comentar, nem me atrevi a tamanha façanha. Hoje, de novo, e com mais tempo, "meti mãos à obra" e encontro sempre nele cambiantes, perspetivas diferentes e muita dificuldade em fazer um juízo de valor sobre este tipo de escrita. SERÁ POSSÍVEL?

    Não sei interpretar, e muito menos avaliar a riqueza destas palavras, uma melhor que a outra, pode ter a certeza. Se eu dissesse excelente na forma e no conteúdo, estava tudo simplificado, mas eu que não sei exprimir-me, assim!

    A prosa aqui apresentada é muito rica, indiretamente, objetiva e subjetiva, mas assentando sempre numa trave mestra, chamada TALENTO.

    Digo-lhe, também, que a mesma não é de fácil interpretação, mas quem a escreveu sabe o que escreveu e para quem a escreveu. Nós, "simples mortais, que escrevemos", não chegamos lá, facilmente.

    Tive de consultar o dicionário, por não saber o significado de alguns vocábulos, e há uns, que podem, como sabem, ter mais do que um significado. Assim, tive, de integrar no texto, aquele que me parecia mais óbvio e lógico. DEU-ME TRABALHO, MAS TAMBÉM ME DEU PRAZER.

    Penso que é um texto CRÍTICO de amor universal, dedicado ao Homem, na grandiosidade que dele se esperava, e que ele não soube ou não quis aceitar, isto é, não acolheu a sua "condição de criatura".

    TODOS QUEREMOS SER ÍCAROS, MAS O SOL DERRETE-NOS, E MORREMOS PARA NÓS E PARA OS OUTROS. É O FIM QUE, UM DIA, SERÁ INÍCIO, DE NOVO, EM MINHA OPINIÃO.

    Um agradável domingo.

    Beijos para ambos.

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  9. Cristina e António,

    Esqueci-me de frisar, chamar a atenção, para a significativa imagem que encima o texto.

    SOMOS TUDO E SOMOS NADA. ESTAMOS À MERCÊ.

    Beijos da Luz.

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  10. Olá Amei a forma de expressão! Adorei o blog todo, inclusive! abraços

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